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26 de outubro de 2009

A última entrevista de Jack Kerouac

29/08/2009 | Por Amanda Górski em tradução
"Nossa bagagem maltratada fora empilhada na calçada novamente; nós tínhamos mais caminhos para percorrer. Mas não importa, a estrada é a vida"




Jean-Louis Lebris de Kerouac nasceu em Lowell, Massachusetts, em 12 de março de 1922; era o mais novo de três filhos de uma família de origem franco-canadense. Devido às dificuldades econômicas por que passava a família, Jack resolveu fazer parte do time de futebol americano do colégio para tentar uma bolsa de estudo na faculdade. Conseguiu entrar na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, para onde mudou-se com a família. Em Nova Iorque conheceu Neal Cassady, Allen Ginsberg e William S. Burroughs.
Em abril de 1951, entorpecido por benzedrina e café, inspirado pelo jazz, escreveu em três semanas a primeira versão do que viria a ser “On the Road”. Kerouac escrevia em prosa espontânea, como ele chamava: uma técnica parecida com a do fluxo de consciência. O manuscrito foi rejeitado por diversos editores. Em 1957, “On the Road” foi finalmente publicado, após inúmeras alterações exigidas. O livro, de inspiração autobiográfica, descreve as viagens de Sal Paradise e Dean Moriarty, cujos protagonistas, aludem a Neal Cassady e ao próprio Kerouac. Os dois viajaram por sete anos percorrendo a rota 66, que cruza os EUA na direção leste-oeste, com descidas frequentes ao México. Saíram de Nova York e cruzaram o país em direção a São Francisco. “On the Road” exemplificou para o mundo aquilo que ficou conhecido como a "geração beat" e fez com que Kerouac se transformasse em um dos mais controversos e famosos escritores de seu tempo – embora em vida tenha tido mais sucesso de público do que de crítica e embora rejeitasse o título de “pai dos beats”.
Seguiu-se a publicação de “The Dharma Bums” (Os Vagabundos Iluminados) – um romance com franca inspiração budista –, “The Subterraneans” (Os Subterrâneos) em 1958, “Maggie Cassidy”, em 1959, e “Tristessa”, em 1960. A partir daí, Kerouac tendeu à direita, politicamente: criticava os hippies e apoiou a guerra do Vietnã. Publicou ainda “Big Sur” e “Doctor Sax”, em 1962, “Visions of Gerard”, em 1963, e “Vanity of Duluoz”, em 1968. “Visions of Cody”, considerado por muitos o melhor e mais radical livro do autor, só foi publicado integralmente em 1972.
Em 21 de outubro de 1969, Jack Kerouac morreu de hemorragia, consequência de uma cirrose, com 47 anos, num hospital em St. Petesburg, na Flórida. O amigo e agente literário Allen Ginsberg reverencia seu talento: “Eu não conheço outro escritor que teve influência tão produtiva quanto Kerouac, que abriu o coração como escritor para contar o máximo dos segredos da sua própria mente”.

A entrevista da "Paris Review"

Os Kerouacs não têm telefone. Ted Berrigan contatou Kerouac alguns meses antes e o convenceu a dar a entrevista. Quando sentiu que a hora do encontro havia chegado, simplesmente apareceu na casa dos Kerouacs. Dois amigos, os poetas Aram Saroyan e Duncan McNaughton, o acompanharam. Kerouac respondeu a seu chamado; Berrigan rapidamente disse a ele seu nome e o propósito de sua visita. Kerouac saldou os poetas, mas antes que pudesse convidá-los a entrar, sua esposa, abraçou-o pelas costas e disse para o grupo sair imediatamente. Jack e eu começamos a falar ao mesmo tempo, dizendo “Paris Review!” “Entrevista!”, enquanto Duncan e Aram começaram a retirar-se na direção do carro. Todos pareciam perdidos, mas eu continuei falando de modo civilizado, aceitável, calmo e num tom de voz amigável, e logo a Sra. Kerouac concordou em nos deixar entrar por dez minutos, na condição de não haver bebidas. Uma vez dentro, quando ficou mais evidente que estávamos em busca de algo sério, a Sra. Kerouac ficou mais amigável, e pudemos começar a entrevista. Parece que as pessoas ainda costumam aparecer na casa dos Kerouacs procurando pelo autor de “On the Road”, e ficam lá por dias, bebendo todo o licor e desviando Jack de suas ocupações sérias. Enquanto a tarde passava, a atmosfera mudava consideravelmente, e a Sra. Kerouac, Stella, se mostrava uma graciosa e encantadora anfitriã. A coisa mais incrível de Jack Kerouac é sua voz mágica, que soa exatamente como suas obras.
Sua voz é capaz das mais assombrosas e desconcertantes mudanças já vistas. Ela dita tudo, inclusive esta entrevista. Após a conversa, Kerouac, que se sentou numa cadeira estilo “Presidente Kennedy” durante a entrevista, se mudou para uma grande poltrona e disse, “Então, garotos, vocês são poetas, não é? Bem, vamos ouvir algumas de suas poesias”. Ficamos por mais de uma hora. Aram e eu lemos algumas de nossas coisas. Finalmente, ele deu a cada um de nós um poema recente com uma dedicatória, e então partimos.

— Ted Berrigan, 1968



TED BERRIGAN — Será que podemos tirar essa mesinha pra colocar isso aqui?

STELLA — Sim.

JACK KEROUAC — Deus, como você é inconveniente, Berrigan.


TED BERRIGAN — Bem, eu não sou um gravador, Jack. Sou apenas um grande falador como você.

KEROUAC — Ok? [Ruídos.] Ok?


TED BERRIGAN — Na verdade eu gostaria de começar... O primeiro livro seu que eu li não foi “On the Road” (Pé na Estrada)... foi “The Town and the City” (Cidade Pequena, Cidade Grande)...

KEROUAC — Nossa!


TED BERRIGAN — Eu achei numa biblioteca. . .

KEROUAC — Puxa! Você leu “Doctor Sax”? “Tristessa”?


TED BERRIGAN — Você tem que acreditar. Tenho uma cópia de “Visions of Cody” que Ron Padgett trouxe para Tulsa, Oklahoma.

KEROUAC — Que se dane o Ron Padgett! Sabe por quê? Ele começou uma pequena revista chamada “White Dove Review” em Kansas City, não era? Tulsa? Oklahoma... Ele escreveu, “comece nossa revista nos mandando um grande poema”. Então eu enviei a ele o poema “The Thrashing Doves”. E então mandei outro e ele rejeitou por que sua revista já tinha começado. Isso é para mostrar como os punks tentam se dar bem batendo nas costas dos outros. Ah, ele não é um poeta! Você sabe quem é um grande poeta? Eu sei quem são os grandes poetas.


TED BERRIGAN — Quem são?

KEROUAC — Vamos ver... William Bissett de Vancouver. Um garoto indiano. Bill Bissett, ou Bissonnette.


SAROYAN — Vamos falar sobre Jack Kerouac.

KEROUAC — Ele não é melhor que Bill Bissett, mas é muito original.


TED BERRIGAN — Por que não começamos com os editores. Como você...

KEROUAC — OK. Todos os meus editores, desde o Malcolm Cowley, tinham a instrução de deixar minha prosa assim como eu havia escrito. Na época de Malcolm Cowley, com “On the Road” e “The Dharma Bums” (Os Vagabundos Iluminados), eu não tinha poder de estabelecer meu estilo para melhor ou para pior. Quando Malcolm Cowley fez revisões intermináveis e inseriu milhares de vírgulas desnecessárias, como, “Cheyenne, Wyoming” (por que não só dizer “Cheyenne Wyoming” e deixar como está), eu gastei quinhentos dólares fazendo a restituição completa do manuscrito de “The Dharma Bums”... E então você me pergunta como eu trabalho com um editor... Bom, hoje em dia, eu sou apenas grato a ele por sua assistência na revisão do manuscrito e por ter descoberto erros lógicos, como datas, nomes de lugares. Ao não revisar o que já escreveu, você dá ao leitor os trabalhos verdadeiros de sua mente durante o ato de escrever: você confessa seus pensamentos sobre os acontecimentos de sua própria maneira imutável... Eu passei toda a minha juventude escrevendo vagarosamente com revisões e especulações intermináveis, deletando, e então percebi que estava escrevendo uma frase por dia, e essa frase não tinha sentimento. Maldição! Sentimento é o que eu gosto na arte, e não artifícios na camuflagem de sentimentos.


TED BERRIGAN — O que o motivou a usar um estilo "espontâneo" em “On the Road” (Pé na Estrada)?

KEROUAC — Tive a ideia de usar o estilo espontâneo em “On the Road” ao ver como meu velho amigo Neal Cassady escrevia suas cartas: sempre na primeira pessoa, rápidas, loucas, confessionais, completamente sérias, minuciosas, com os nomes reais no caso dele (sendo cartas). Também me lembrei do aviso de Goethe — em uma profecia Goethe disse que a literatura ocidental seria confessional por natureza. Dostoiévski também percebeu isso, e poderia ter seguido isso, se tivesse vivido o bastante para realizar a obra-prima que planejou: “O Grande Pecador”. Cassady também começou seus escritos juvenis com tentativas de fazer algo lento, sofrido, cheio da porcaria da técnica, mas ficou cheio, como eu, vendo que não botava as coisas para fora do modo visceral como elas brotavam. Mas seu estilo me deu um toque...é uma mentira cruel daqueles vagabundos da costa oeste dizer que eu tirei dele a ideia para fazer “On the Road”. Todas as cartas que ele me escreveu falavam do tempo em que era mais jovem, antes que eu o conhecesse, uma criança com o pai etc., e das experiências seguin¬tes da adolescência. A carta tem a fama injusta de possuir treze mil palavras. Não, o texto de treze mil palavras foi “The First Third”, que ele conservou em seu poder. A carta, quer dizer, a maior carta, tinha quarenta mil palavras, veja bem, um pequeno romance completo. Foi a maior obra escrita que já vi, melhor que qualquer um faria nos Estados Unidos — ou pelo menos dava para Melville, Twain, Dreiser, Wolfe e sei lá quem mais tremerem na sepultura. Allen Ginsberg pediu esta carta enorme emprestada. Depois que leu, passou para um sujeito chamado Gerd Stern, que morava em um barco-casa em Sausalito, Califórnia, em 1955, e esse cara perdeu a carta, deve ter deixado cair dentro d'água. Neal e eu a chamávamos de Joan Anderson Letter, por conveniência. Contava tudo sobre um fim de semana de Natal em salões de bilhar, quartos de hotel e prisões de Denver. Estava cheia de casos engraçados e trágicos também, tinha até o desenho de uma janela, com as medidas, para ajudar o leitor a entender, e muito mais. Veja só: esta carta teria sido publicada com o nome de Neal, se fosse possível encontrá-la. Mas, como você sabe, era uma carta para mim, propriedade minha, e Allen não poderia ter sido tão descuidado com ela, nem o cara do barco. Se nós pudéssemos descobrir esta carta de quarenta mil palavras, faríamos justiça a Neal. Além disso, gravamos várias conversas rápidas por volta de 1952, e as ouvimos várias vezes, nós dois pegamos o segredo do código para contar uma história, e percebemos que era o único jeito de registrar a velocidade, a tensão e as bobagens deslumbradas da época. É o bastante?


TED BERRIGAN — O que mudou no estilo, desde “On the Road”?

KEROUAC — Que estilo? Oh, o estilo de “On the Road”. Bem, como eu disse, Cowley mexeu no texto original, sem que eu pudesse reclamar. Depois disso, todos os meus livros foram publicados do modo como eu os escrevi, como já falei, e o estilo tem variado desde a escrita rápida altamente experimental de “Railroad Earth” até o estilo místico voltado para dentro de “Tristessa”, da loucura confessional à la “Memórias do Subterrâneo” de Dostoiévski em “The Subterraneans” (Os Subterrâneos) e a perfeição dos três reunidos em “Big Sur”, que conta uma história simples no estilo fluente da prosa literária, até “Satori em Paris”, que é, na verdade, o primeiro livro que escrevi com bebida ao lado (conhaque e bourbon) ...Sem comentar sobre “Book of Dreams” (O Livro dos Sonhos), no estilo de uma pessoa que mal acor¬dou, escrevendo à lápis na beira da cama, sim, à lápis, que trabalho! Olhos cansados, a mente louca confundida e mistificada pelo sono, de¬talhes que explodem e você não entende o significado, até que acorda, toma café, olha para os escritos, e vê a lógica dos sonhos na própria linguagem dos sonhos, entende? E finalmente decidi em minha cansada meia idade, desacelerar, e fiz “Vanity of Duluoz” com um estilo mais moderado, para que, tendo sido tão esotérico todos esses anos, alguns leitores mais velhos voltassem e vissem o que dez anos fizeram à minha vida e pensamento... o que é, no final das contas, a única coisa que tenho a oferecer: a verdadeira história do que eu vi, e como eu vi.


TED BERRIGAN — Você ditou algumas seções de “Visions of Cody”. Você já havia usado este método?

KEROUAC — Eu não ditei partes de “Visions of Cody”. Eu transcrevi um trecho de uma conversa gravada com Neal Cassady, ou Cody, sobre suas aventuras juvenis em Los Angeles. Eu não havia usado este método até então; não fica muito bom, na verdade, com Neal e comigo mesmo, quando escrevemos todos os ‘ah’, ‘oh’, e ‘uhum’, e com o fato de que a fita continua rodando e não podemos ficar gastando eletricidade... Então novamente, eu não sei, acho que devo recorrer a isso só às vezes; estou ficando cansado e cego. Essa questão me desnorteia. De qualquer modo, todos fazem isso, mas eu ainda estou rabiscando. McLuhan diz que estamos nos tornando mais orais, então acho que todos aprenderemos a falar com as máquinas de modo cada vez melhor.


TED BERRIGAN — Qual é o estado de “Yeatsian semi-trance” que provê uma atmosfera ideal para a escrita espontânea?

KEROUAC — Bom, é quando você consegue entrar em transe com sua boca tagarelando... Escrever é no mínimo uma meditação silenciosa mesmo que você esteja a mil por hora! Lembra daquela cena em “La Dolce Vita” na qual um velho padre está irado por causa de um bando de maníacos que haviam ido até a árvore onde as três crianças tinham visto a Virgem Maria? Ele diz: “Visões não estão disponíveis nessa tolice frenética, nesse empurra-empurra; visões são apenas obtidas no silêncio e na meditação”.


TED BERRIGAN — Você disse que haiku (haikai) não é escrito espontaneamente, mas trabalhado várias vezes e revisado. Isso se aplica a toda a sua poesia? Por que o método para escrever poesia se diferencia do método para escrever prosa?

KEROUAC — Não, primeiramente, escrever em haiku fica melhor quando se revisa e trabalha várias vezes. Eu sei, eu tentei. Deve ser completamente econômico, sem floreios e linguagem rítmica, deve ser como uma simples foto com três linhas. Pelo menos foi assim que os mestres mais velhos fizeram, gastando meses em três linhas, e dizendo:

No barco abandonado,
O granizo
Bate violentamente.

Isso é Shiki. Mas para o meu verso regular em inglês, eu fiz como uma prosa corrida, e para obter isso, usei um caderno do tamanho do manuscrito original de “Vanity of Duluoz”. O rolo é feito de um papel fino de centenas de metros, para a forma e comprimento do poema, assim como um músico de jazz tem que colocar sua letra numa determinada quantidade de barras, dentro de um refrão, que se repete ao longo do texto, mas neste caso o refrão não para quando a folha termina. E finalmente, na poesia você pode ser completamente livre para dizer o que quiser, você não precisa contar uma história, pode usar trocadilhos secretos.


TED BERRIGAN — Como você escreve haikai?

KEROUAC — Haikai? Você quer ouvir haikai? Veja, você tem que comprimir em três linhas uma história enorme. Primeiro você começa com uma situação haikai — então você vê uma folha, como eu tinha dito a ela (Stella) outra noite, caindo nas costas de um pardal durante uma forte tempestade de inverno em Outubro. Uma grande folha cai nas costas de um pequeno pardal. Como você pode comprimir isso em três linhas? Agora, em japonês você tem que comprimir em 17 sílabas. Não precisamos fazer isso em inglês, pois não temos o mesmo sistema silábico que o Japonês. Então você diz: “Pequeno pardal” — você não tem que dizer “pequeno” todo mundo sabe que um pardal é pequeno, então você diz:

Pardal
Com grande folha em suas costas —
tempestade

Não está bom, não funciona, esqueça.

Um pequeno pardal
Quando repentinamente uma folha toca suas costas
Do vento.

Hah, assim que se faz. Não, está um pouco longo. Viu? Já está um pouco longo, Berrigan, entende o que quero dizer?


TED BERRIGAN — Parece haver uma palavra extra. Que tal tirar o “quando”? Ficaria:

Um pardal
Uma folha de outono repentinamente toca suas costas —
Do vento!

Hey, isso está bom. Acho que “quando” era a palavra extra. Você pegou a ideia aqui, “Um pardal, uma folha de outono de repente”— não temos que dizer “de repente” não é?

Um pardal
Uma folha de outono toca suas costas —
Do vento!

[Kerouac escreve a versão final em um caderno de espiral]

2 comentários:

  1. Jack era um homem muito charmoso...dotado de uma postura ácida passível de se contemplar e capaz de inspirar (mas não de se seguir, ao menos não para mim!). Reafirmar o brilhantismo dele é redundância; agradeço os livros, que o eternizaram; bem como todas as demais referências que o colocam diante de nós como uma porta aberta; de fato, ele é uma parcela do que somos (humanos, todos somos dotados das mesmas possibilidades; todos temos Kerouac em algum nicho de nós mesmos, mas o conteúdo desse nicho, posto em prática, é uma questão de escolha por afinidade estreita ou personalidade). Alguns aspectos dele são amenos e, para mim, os mais apaixonantes. Os surtos eu contemplo, apreendo em algum nível, todavia não uso...só me convém criar a significação de realidade deles (sentir por saber e calar porque não me apetece). De modo geral, gosto do Jack; como quem contempla uma tempestade. BeiJim, Edu. :D

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  2. P.S.: Edu, quer seguir meu outro blog? Agradeço desde já! Beijo.
    http://carlotavasconcelos.blogspot.com/

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